sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os amigos tornam-nos herdeiros

Alguns amigos tornam-nos herdeiros de um lugar, outros de uma morada, outros de uma razão pela qual viver. Certos amigos deixam-nos o mapa depois da viagem, ou o barco em qualquer enseada, oculto ainda na folhagem, ou o azul desamparado e irresistível que lhes serviu de motivo para a demanda. Há amigos que iniciam-nos na decifração do fogo, na escuta dos silêncios da terra, no entendimento de nós próprios. Há amigos que nos conduzem ao centro de bosques, à geografia de cidades, ao segredo que ilumina a penumbra do templo, à bondade de Deus.

Pelos amigos descobrimos a vastidão de um mundo interior, intacto e errante como uma paisagem do fundo dos mares, e, desse modo também, primordial e delicado, escondido e sublime. Dos amigos recebemos o socorro, quando nos faltam palavras (ou outra coisa que não sabemos bem, mas que talvez nem sejam palavras) para medir em nós a altura da alegria ou da dor. O olhar deles é uma dádiva confiada à vida; é alento, sopro, energia pura; e tem para nós um inesgotável poder reparador.

Os amigos sustentam connosco, e a nosso lado, o duro e ligeiríssimo mistério da existência. Mesmo quando os dias empalidecem ou se estilhaçam, a amizade tem a capacidade de religar, a partir do fundo, as pontas decepadas e dispersas, os opostos indizíveis da alma: a noite e o dia, a dor e o riso, a ação e a contemplação, a vida e a morte.

Porventura o mais fecundo a perguntar, quando os nossos amigos morrem, não é: «porque é que eles partiram?» O que levaremos o resto da vida e responder, sempre em total gratidão, é antes: «porque é que eles vieram?»

José Tolentino Mendonça
Nenhum caminho será longo -para uma teologia da amizade

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